A aventura Chilena: Natal na estrada

O almoço havia sido realmente maravilhoso. Chega a parecer mentira quando eu conto essa história, eu mesmo inclusive muitas vezes me pego em lembranças um pouco turvas e me questiono se aquilo aconteceu de fato. Mas quando vejo as fotos e as mensagens do WhatsApp realizo que vivi aquilo.

Tá aí uma coisa que aprendi na estrada: eu costumo amar com muita sinceridade quem, de alguma forma, me mostra que esse mundão ainda tem chance, que as pessoas ainda são boas.

Essa família que conheci no camping foi uma demonstração disso (pra quem não leu o começo dessa história, clica aqui). Depois de ter sido deliciosamente bombardeado por perguntas curiosas a respeito do que eu andava fazendo sozinho por aqueles lados, por que eu carregava a câmera e o tripé, entre outras, e depois de melhorar em uns 15% meu nível de espanhol – e de mímica também – já era tempo de irmos dar mais uns pulos na água. Brincava com as crianças e tentava entender o que elas me perguntavam. A Flopi e o Jorge (leia Horhe) eram crianças muito espertas e ativas. Entendiam que eu não falava a língua deles e tentavam me ensinar novas palavras, e ficavam alegres ao descobrir aquilo que eu tentava dizer. A cachorrinha Beagle (você deve ter a visto no finalzinho do vídeo do post passado), Suyai, era muito hiperativa. Adorava brincar e correr com as crianças, e no camping o fazia ainda com mais alegria. Os pais, Rodrigo e Nicole, super jovens, gostavam de levar a família para esse refúgio e desfrutar da tranquilidade e do contato com a natureza.

Naquele dia estavam ali só para fazer um asado, refrescarem-se nas águas tibias  e voltarem. Quando estávamos fazendo um lanche, antes deles partirem, me questionaram sobre meus planos: ao amanhecer, iria andar até a trilha e percorrê-la em três ou quatro dias. Eles reprovaram a ideia pois eu passaria a noite de Natal no meio do mato, muito provavelmente sozinho, afinal, quem é tão desligado assim para passar o Natal acampado numa trilha, né? Além disso, o Rodrigo me explicou que a trilha poderia ser perigosa para uma pessoa sem qualquer companhia uma vez que se ocorresse algum incidente, conseguir algum tipo de ajuda seria bem complicado. E eu, na minha inocência, tudo estaria lindo e maravilhoso.

O convite

A proposta veio imediatamente após minha tentativa de dizer que eu iria ficar bem. Expliquei a eles que aquele seria o terceiro ano que passaria o Natal e o ano novo longe da família e que eu não me importava com a solidão junto à natureza. Eu já fazia planos de ficar uma noite em claro para ver o céu lá de cima, na esperança também de avistar OVNIS – existem histórias de avistamento de OVNIS nesse lugar onde eu estava indo -, mas fui completamente desarmado. Rodrigo e Nicole me convidaram a passar o Natal com a família deles, perto de Santiago. Insistiram, diziam que eu iria me alimentar bem, descansar bastante e depois do Natal o Rodrigo poderia até fazer a trilha comigo, já que era uma vontade muito grande que ele tinha também.

Estávamos de acordo. Juntaram suas coisas e foram embora. Eu fiquei no camping naquela noite pois já havia pago. Fiz minha miojo, escrevi um pouco, li outro, sentei à beira do rio, mas logo esfriou e fui para dentro do meu saco de dormir. Antes de pegar no sono pensei naquelas pessoas e em que força no mundo me havia colocado junto delas, afinal, parei num camping por conselho de pessoas totalmente desconhecidas e escolhi aquele camping totalmente a esmo….

Acordei com uma tranquilidade que há muito não o fazia. Passarinhos cantando. O ventinho gelado pela manhã não me impediu de sair da barraca e de respirar fundo aquela maravilha que eu estava vivendo. O meu café da manhã foi simples, um ou dois pedaços de pão que a família me havia deixado, uns goles de água e uns biscoitos bem amassados do dia anterior. Logo levantei acampamento, me despedindo do lugar enquanto subia o caminho até a saída do camping.

Solidariedade na carona

A umidade da noite desaparecia rapidamente e a poeira levantava na estrada que me levaria de volta à cidade de Talca. Sempre que escutava um carro já cerrava o punho e levantava o dedo em sinal de positivo para alguma pessoa bondosa. Sem muito resultado no primeiro quilômetro da caminhada, me distraí quando passei por duas vacas andando na estrada e perguntei se elas estavam indo para Talca – naqueles momentos que você fala sozinho e por pouco, muito pouco, beira a loucura -. Elas responderam MU e eu continuei no meu caminho.

Eis que surgiu uma camionete branca e parou logo ao meu lado. Estavam quatro homens com capacete. Me disseram que não iriam até Talca, mas que poderiam me deixar perto da cidade. Mais uma vez, joguei a mochila na caçamba e entrei. Me sentia a pessoa mais livre do mundo quando fazia isso. Eles trabalhavam na companhia de energia e estavam por aqueles lados fazendo a manutenção no cabeamento de umas residências por ali, mas antes de voltarem à Talca precisavam fazer outro serviço de emergência.

Quando comecei a ler sobre as caronas no Chile, vi relatos de muitas viajantes sobre as pessoas que ofereciam caronas. Aparentemente, era um hábito bastante comum de o motorista, ou outro passageiro do veículo, oferecer comida para o viajante. Por educação ou por solidariedade, visto que muitos desses que viajam de carona, são pessoas que não podem comprar uma passagem de ônibus. De fato, aqueles homens me ofereceram frutas e refrigerante.

Comi um pêssego delicioso enquanto explicava pra eles por onde eu andava e por onde eu iria andar. Contei pra eles sobre a família que recém conhecera e eles se espantaram. Fui interrompido com o motorista atendendo uma ligação e dizendo: “esse é seu dia de sorte! Nosso trabalho foi cancelado e vamos te deixar Talca”.

Na rodoviária onde eles me largaram, liguei para o Rodrigo e ele me buscou. Era dia 23 de Dezembro de 2013.

Passeios e Natal

Fizemos diversos passeios durante os dias que antecediam o Natal. No mesmo dia da minha chegada fomos ao Balneário Rio Claro, onde fizemos um passeio de Barco ao longo do Rio Claro. Ali onde eu tomei pela primeira vez o tal do Mote con Huesillo, a refrescante bebida de pêssego com grãos de trigo. Eu, na época, não fazia ideia do que era aquilo e somente depois de comer o pêssego que vem inteiro dentro da bebida entendi. O grão de trigo só fui descobrir quando cheguei em casa e pesquisei uma tradução.

Naquele mesmo dia ainda fomos visitar um tipo de santuario no Cerro La Virgen. Um lugar muito bonito, com uma vista panorâmica da cidade e um lindo monumento da Virgen del Carmelodatado de 18 de Setembro de 1910, em comemoração ao primeiro centenário da independência do Chile. A Virgen del Carmelo é patrona do exército Chileno.

Voltamos pra casa e eu dormi na cama do Jorge, que foi para o quarto dos pais com a irmã. Sempre tenho o sentimento de estar incomodando quando tiro as pessoas do seus lugares, mas eu faria o mesmo por outro hóspede. Então dei buenas noches e fui, ainda desacreditado que aquilo estava acontecendo.

Acordamos, Nicole e eu fomos levar as crianças para a natação e paramos para comer um pãozinho fresco, assado na brasa, bem típico também deles. Caminhamos um pouco pelo movimentado centro da cidade, que fervia às vésperas do Natal e depois voltamos pra casa. Eu aprendi a jogar xadrez! As crianças me ensinaram. Foi um desafio porque eu não entendia uns 42% do que elas me explicavam, isso quando não inventavam algum movimento da rainha. Nessa hora o Rodrigo reprimia para não me passarem a perna. Já me sentia em família.

No dia 25 saímos cedo de casa. Eles queriam me mostrar as belezas do Chile na nossa ida até Santiago. Fomos em direção ao mar e até perto de Santiago pelo litoral mesmo. Era uma paisagem mais bonita que a outra e a minha vontade de pegar o carro e vir pra esses lados, um dia, foi plantada. Paramos, já depois de algumas boas horas de viagem, em Pichilemu, um lugar badalado, mas simples. Pedras grandes, ondas grandes também. Um lugar repleto daquelas vans de amigos que se juntam para passar as férias surfando.

Visitamos também, naquela mesma região, algumas salinas. É uma coisa muito louca! A água do mar adentra alguns canais de forma natural e os produtores constroem piscinas de forma que a água fique parada. E dali sai um sal puríssimo. Inclusive fui presenteado com um saquinho para trazer para o Brasil.

Paramos para tomar um café. O garçom meio atrapalhado – e a minha dificuldade para explicar o funcionamento da câmera em espanhol – fez uma foto muito engraçada de nós todos. Depois fomos presenteados com um pôr do sol maravilhoso. O meu primeiro no Pacífico. Vai ficar guardado com muito carinho no meu coração.

Dividir aqueles momentos com aquelas pessoas estava sendo algo que nem meus mais otimistas pensamentos traduziam.

Chegamos e já começamos os preparativos para o churrasco. Uns por ali, em volta da churrasqueira, outros lá dentro terminando os acompanhamentos. A família era grande, com bastante jovens e crianças, muitas famílias unidas. Tentei me dividir: hora ia brincar com as crianças, hora eu ia conversar com aqueles por quem eu já sentia o carinho de tios, tias e primos. Também opinei no asado que estava sendo preparado, enquanto todos dávamos risadas das histórias que contavam em volta da churrasqueira.

Jantamos todos juntos e aquelas quase 20 pessoas falando quase todas ao mesmo tempo fez lembrar de casa. Da nossa família reunida e do volume excessivo do qual sempre implicava, mas que sentia falta.

Eu decidi que não ia gravar nada durante aqueles momentos com todos. Não que eu não quisesse, mas eu queria aproveitar aquilo, aquelas pessoas, aquela alegria inexplicável que eu sentia naquela hora. Eu estava passando o Natal com pessoas que eu havia conhecido há 3 dias. Pessoas que me acolheram de uma forma tão simples, tão pura e tão inexplicável. O mínimo que eu poderia fazer era viver aquelas pessoas.

Como de costume aqui no Brasil, nos juntamos todos na sala para a troca de presentes. Uma alegria só. As crianças eufóricas. Lembro-me muito bem de um bixinho que elas ganharam, eletrônico. Quase todas elas ganharam um deles. Ele era como se fosse um “tamagotchi“, pra quem é mais antigo, só que ele tinha um corpo, era um pequeno robozinho. Chorava, ria, sentia cócegas, ficava brabo. E pra cada sentimento ele fazia barulho, então você pode imaginar a cena! Naquela hora eu me sentia tão bem com aquelas pessoas, não acreditava muito naquilo tudo. Fiquei bastante emocionado com tudo que estavam fazendo por mim, por tudo que me estavam proporcionando, e veio o golpe que me fez desabar em lágrimas. Fui surpreendido quando anunciaram que o Viejito Pascuero (ou o nosso Papai Noel) havia deixado presentes para mim. As crianças me olhavam um pouco assustadas. Escutei até uma delas, mais preocupada, perguntando baixinho para alguém por que eu estava chorando.

Assim, cercado de pessoas muito carinhosas, muito amáveis e receptivas, estava enamorado do Chile. Uma noite de Natal que nunca vou esquecer, de uma das viagens mais encantadoras que eu já fiz. Pessoas que eu amo com muita sinceridade, pessoas que me mostraram que esse mundão ainda tem chance, que ainda existem pessoas boas.

E eu estava recém no primeiro quarto da viagem.

 

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